Um mergulho na nova classe média

Durante quatro meses, nossos repórteres conviveram com famílias da classe C paulistana. O relato dessa imersão vai muito além das pesquisas convencionais. As sutilezas do estilo de vida da nova classe média revelam os hábitos e sonhos de cerca de 30 milhões de brasileiros que, só neste ano, serão responsáveis por R$ 620 bilhões em compras. A seguir, um retrato na intimidade da clientela mais cobiçada do mercado nacional

Por Marcos Todeschini e Alexa Salomão – Época Negócios – ano 3 – Nov 2009 – nº33
THOMAS SUSEMIHL

NOVOS CONSUMIDORES_Moradores de bairros da periferia paulistana, os personagens desta foto são representantes típicos das famílias da nova classe média. Até pouco tempo atrás, viviam com o básico. Agora estão ávidos por consumir

Com movimentos rápidos de mãos, Dione Silva, 37 anos, enrola o cabelo da filha de 4 anos. Ambas estão sentadas no sofá da sala, numa casa simples da zona norte, periferia de São Paulo. Quando Dione termina, a pequena corre até a cozinha e abre a geladeira vermelha modelo anos 80 para pegar um achocolatado em caixinha. Dione vai para o quarto se vestir. Escolhe uma roupa, mas se vê diante de um dilema: não tem o que calçar. Não que lhe faltem sapatos, mas porque sobram. Coleciona mais de 100 pares. “Tenho aquela doença de mulher: se estou mal, compro sapato para me animar. Se estou feliz, compro sapato para comemorar”, diz. “Mas quando preciso sair, nunca sei o que escolher.” Pega uma sandália básica e está pronta para enfrentar o dia. No outro lado da cidade, na Zona Oeste, em uma casa parecida, de quarto-sala-cozinha, as nove pessoas da família de Kelly Passos, 23 anos, não cabem ao redor da mesa para almoçar. Precisam se distribuir pelos outros cômodos da casa. A atenção das pessoas se divide entre a comida e os vídeos do YouTube acessados em um dos dois computadores.

“Tenho aquela doença de mulher: se estou mal, compro sapato para me animar. Se estou feliz, compro sapato para comemorar”

Não muito longe dali, na casa de Wagner Gonçalves, 37 anos, a preocupação do dia fica por conta de uma cama. Por meses, ele peregrinou pelas lojas em busca de uma cama de casal com tamanho um pouco menor, para caber em seu quarto. Não encontrou. Precisou pedir ajuda a um marceneiro do bairro que, naquele dia, iria aparecer para tirar as medidas. A nova cama dividirá espaço com um armário de seis portas dentro do qual existe uma coleção de perfumes e roupas caras de grifes, como Armani e Hugo Boss. “Prefiro pagar mais, porque você tem outro tipo de acabamento e qualidade”, diz. Já o técnico Mauro Piacitelli prepara-se para mais uma jornada diária. De seus 30 anos, os últimos dois foram os mais agitados: tornou-se pai, entrou numa faculdade e passou a andar de carro.

“Prefiro pagar mais, porque você tem outro tipo de acabamento e qualidade”

Geladeira velha recheada de mimos, como achocolatado instantâneo. Casas miúdas em que o espaço é dividido entre pessoas e computadores. Quartos onde não entra uma cama de casal, mas com armários abarrotados de roupas e perfumes. A mistura caótica entre o velho e o novo, a privação e a abundância, o popular e o clássico encontrada nas casas de Dione, Kelly, Wagner e Mauro traçam o retrato fiel de uma camada específica da população brasileira: a classe C, ou a nova classe média. Em números absolutos, são 26 milhões de pessoas que nos últimos cinco anos ascenderam na pirâmide social, fazendo a classe média representar mais da metade da população brasileira pela primeira vez na história.

Até poucos anos atrás, depois de quitadas as contas do mês, essas pessoas não tinham um centavo sobrando para consumir mais do que os itens da cesta básica. Hoje, colecionam sapatos às centenas, têm acesso à tecnologia e frequentam faculdades. Tudo isso graças a mudanças profundas na economia brasileira, disparadas pelo Plano Real, que elevaram a renda dos brasileiros. Nos últimos sete anos, essa camada da população teve um aumento superior a 40% em sua renda familiar, que hoje vai de R$ 1,1 mil a R$ 4,8 mil. “Esse aumento já injetou na economia mais R$ 100 bilhões desde 2002”, diz Haroldo Torres, especializado em pesquisas sobre a base da pirâmide, sócio da consultoria Plano CDE.

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