Nova Classe C – Armani no armário

Igual a tantas crianças, de tantos bairros de periferia com tantos sonhos, Wagner Gonçalves tinha o seu: tornar-se jogador de futebol.

Por Marcos Todeschini e Alexa Salomão
Claus LehmannVENCER NA VIDA_Wagner Gonçalves, 37, pega no batente desde os 14: hoje tem carro e planeja a casa própria. A sogra, Maria Inês, 50, migrou do Piauí para São Paulo. Não estudou, mas fez questão de dar à filha Patrícia, 28, a oportunidade de cursar duas faculdades
Queria praticar o esporte em campos menos batidos, com chuteiras menos rasgadas e calções menos esburacados do que aqueles com que jogava na periferia paulistana durante a infância. Mas também via naquele futuro a possibilidade de fazer fortuna, comprar carros, viajar. Sair, enfim, da miséria. Seus sonhos ganharam contornos mais realistas quando, ainda criança, começou a jogar no time juvenil do Santos. Mas uma contusão no joelho, aos 14 anos, impediu-o de ir adiante. Filho de um torneiro mecânico e de uma dona de casa, largou a bola e pegou no batente. “Como meu pai não podia me sustentar, precisei sair do futebol.” Seu olhar fica um pouco distante quando se lembra do episódio. “Deixei de lado o mundo do esporte para fazer uma excelente carreira de office boy”, ironiza Gonçalves, 37 anos. Assim como milhares de cidadãos da nova classe C que desempenham tarefas de serviçais, como porteiros e empregadas domésticas, o trabalho fez com que ele convivesse com as roupas de marca e os aromas de perfumes importados usados por seus chefes. Gonçalves acreditou que ter os mesmos produtos lhe reservaria o direito de ser igualmente respeitado e bem-visto. Os desejos cultivados em silêncio no dia a dia do escritório estão hoje por todo canto na casa onde ele mora, no bairro Cidade Dutra, na Zona Sul de São Paulo. Em seu armário, as roupas penduradas no cabide exibem etiquetas premium, como Puma, Adidas e Armani. As peças dividem espaço com vidros e mais vidros de fragrâncias Hugo Boss e Bulgari. Sim, todos originais. “Eu via meus chefes com roupas legais e perfumados”, diz ele. “E pensava que um dia seria assim também.”

Sete de cada dez consumidores da nova classe média acreditam que cuidar da aparência aumenta as chances de uma pessoa se dar bem na vida. O conceito é bem-vindo no mercado de luxo. As empresas que detêm as marcas não temem que essa crença seja uma ameaça ao glamour de suas grifes. Segundo Carlos Ferreirinha, presidente da MCF, consultoria especializada no mercado do luxo, a ascensão da classe C pode até popularizar alguns nomes, mas não chega a ser um problema. “Com a concentração de marcas premium em grandes grupos globalizados, cresce a pressão pelos resultados, pelo lucro”, diz Ferreirinha. “Mas isso não quer dizer que a marca vai deixar de ser exclusiva – apenas será alcançada por um número maior de pessoas.”

“Com a concentração de marcas premium em grandes grupos globalizados, cresce a pressão pelos resultados, pelo lucro”, diz Ferreirinha. “Mas isso não quer dizer que a marca vai deixar de ser exclusiva – apenas será alcançada por um número maior de pessoas.”

O preço tende a permanecer como o divisor dos mercados. A classe C não compra nada caro demais, que esteja muito além de sua realidade financeira. Os perfumes importados, Gonçalves encomenda aos velhos amigos, cultivados nos tempos de futebol, quando viajam ao exterior. As roupas ele mesmo compra, durante a temporada de liquidações nas lojas de grife. Sente orgulho em comentar sua habilidade para a barganha. “Já paguei R$ 100 por uma camisa que custava R$ 700”, diz Magalhães. “Se não me dão um bom desconto, não levo mesmo.” Diferentemente do que por vezes ocorre entre os novos-ricos, pagar mais por um produto – e gargantear a compra – não é sinal de sucesso na nova classe média. Pelo contrário. Quem passou uma vida de privações não sente orgulho em comprar nada sem antes negociar a favor do próprio bolso. Não é eficaz, portanto, criar conceitos, por meio da propaganda, de objetos que estão fora do tamanho do bolso. Vender ilusão, para a classe C, não funciona. “Quem está nessa faixa da população quer ser o mais rico entre os pobres e não o mais pobre entre os ricos”, diz Renato Meirelles, do Data Popular, instituto de pesquisa que se especializou em coletar dados da classe emergente. “Diferente dos novos-ricos do passado, os consumidores da atual classe C não negam suas raízes, nem têm vergonha de lembrar quem eles eram antes.”

“Quem está nessa faixa da população quer ser o mais rico entre os pobres e não o mais pobre entre os ricos”

Filho de uma família de classe média alta paulistana, Meirelles costuma passar semanas em casas da periferia de diversas capitais do país. Foi nessa convivência que descobriu que a relação da classe C com as marcas segue um padrão próprio. Tome como exemplo a escolha do sabão em pó. A dona de casa não leva o mais barato – como já se acreditou um dia. Leva o sabão que rende mais, mesmo que custe um pouco mais caro. Essa nuance veio à tona numa das visitas à periferia em que foi acompanhado pelo presidente de uma indústria fabricante de detergente. O executivo quis saber por que a dona de casa não usava sua marca de sabão em pó. A mulher respondeu com uma pergunta: “O senhor já lavou roupa?”. O executivo em questão só tinha visto o produto ser manipulado em laboratórios e diante da sua constrangedora falta de experiência prática, ela disse: “Sua marca não faz espuma”. Ao saírem da casa, o presidente voltou-se para Meirelles e confidenciou: “Gastei R$ 2 milhões em pesquisas para tirarem a espuma da fórmula do sabão”.

Laços de família

Por falta de familiaridade, um número incontável de empresas comete escorregões como esse – investe em produtos que contrariam as expectativas do cliente. Outras nem sequer têm conhecimento do imenso mercado que estão deixando de lado. A bela casa de três andares onde mora Gonçalves, por exemplo, tem um formato atípico – é triangular. Só assim pôde acompanhar o formato do terreno. No interior, portanto, os cômodos parecem desajustados. Para chegar até os quartos é necessário subir lances de escadas com degraus apertados. Os móveis ocupam posições nada convencionais. No dormitório, uma televisão de 20 polegadas divide espaço com o grande armário onde guarda seus pertences de grife, uma cama de solteiro, além de um colchão de solteiro. Gonçalves compartilha o quarto com a namorada, mas não a mesma cama. “Nenhuma cama de casal cabe neste espaço”, diz. Depois de procurar por meses nas lojas, a solução foi recorrer a um marceneiro do bairro capaz de resolver o problema com um móvel sob medida. Arquitetos, decoradores e engenheiros não fazem parte do rol de profissionais a quem a classe C recorre. Por isso, casas com formatos irregulares são uma das marcas da periferia. “As empresas ainda não atentaram para o fato de que é preciso construir móveis especiais para esse consumidor”, diz André Frota, vice-presidente da Future Group, agência que produziu relatórios sobre o comportamento da classe C. “Estão perdendo um mercado imenso.”

Gonçalves mora com a namorada na casa da mãe dela, Maria Inês Silva, 50 anos. Privacidade não é o forte por lá. O almoço de domingo é o retrato do tipo de convivência afetiva da classe C. A mesa da cozinha, em vez de ter apenas três pessoas sentadas – ela, a filha e o genro –, é uma festa. Entram em cena três filhos da vizinha do lado, de 7, 5 e 3 anos. Dona Maria Inês se tornou madrinha de um dos pequenos quando a família das crianças havia acabado de chegar ao bairro. “A mãe saía para trabalhar e os deixava em casa. Cuido com gosto. Todo mundo precisa se ajudar.” Maria Inês, na sua simplicidade, define um dos valores que mais diferenciam a classe C das classes A e B – a necessidade de preservar e respeitar os laços afetivos com os amigos, os vizinhos e, principalmente, com a família.

classe c 02

Saga de herói

A criação da nova classe média é resultado de um fenômeno que teve início na década de 60, período marcado por uma grande marcha migratória do campo para as grandes cidades, que se estendeu ao longo da década seguinte. São pessoas como Maria Inês, que, aos 13 anos, deixou a miséria no Piauí e chegou a São Paulo. Eram tempos do chamado milagre econômico, ela sonhava com uma vida melhor. Mas igual a outros que percorreram a mesma trajetória, não encontrou exatamente o que esperava. Quando vieram os anos 80 – a década perdida pela estagnação econômica –, a maioria dos migrantes amargou anos difíceis e engrossou a massa de trabalhadores informais que ocupou as calçadas para vender toda sorte de bugigangas. A realidade dessa faixa da população começou a mudar a partir de 1994, com o lançamento do Plano Real e o controle da inflação. “A estabilidade trouxe uma mudança estrutural na economia”, diz o economista e demógrafo Haroldo Torres. “E ela foi fundamental para ampliar a renda e o poder de compra na base da pirâmide.” Nos últimos 15 anos, o salário mínimo passou a subir acima da inflação e os preços agrícolas, abaixo dela. A nova matemática permitiu que os mais pobres gastassem menos com comida e tivessem uma sobra de recursos para adquirir bens antes inacessíveis. Foi só nessa época que Maria Inês começou a sonhar em ter uma casa própria. “Cheguei a pensar que ia viver de aluguel a vida inteira”, diz.

Com o aumento da escolaridade, assistem-se a mudanças radicais
na periferia: seus moradores casam mais tarde e têm menos filhos


Uma das mudanças mais importantes nesse processo de transformação social foi o acesso à educação. Entre 1981 e 2008, o índice de trabalhadores com ensino médio completo subiu de 16,6% para 38,3%. Um adulto hoje na faixa de 50 anos tem cerca de oito anos de estudo. Mas os filhos deles ficaram no mínimo 12 anos nos bancos escolares. Patrícia, de 28 anos, namorada de Gonçalves e filha de Maria Inês, foi mais além. Tem 20 anos de estudos completos – até o momento. Maria Inês fez um esforço pessoal para garantir a Patrícia o estudo que não teve. Adiou a compra do carro e o término da construção da casa, mas colocou a filha em colégio particular e pagou sua faculdade. Formada em administração, Patrícia começou a trabalhar como supervisora numa consultoria. Com o próprio dinheiro, concluiu também a faculdade de recursos humanos. Pesquisas indicam que cada ano a mais de estudo representa um acréscimo de 15% na renda.

Com mais educação e ganhando tanto ou mais do que os pais, a opinião dos filhos da nova classe média é decisiva nos hábitos de consumo da família. “Quando tenho dúvidas na hora de me decidir por uma compra, é minha filha quem me ajuda”, diz Maria Inês. Além disso, também criaram novos estilos de vida, que mudaram radicalmente o cotidiano na periferia. Para mulheres como Patrícia, a renda adicional e o conhecimento obtido a partir dos bancos escolares lhe renderam autoestima e liberdade para fazer as próprias escolhas – o que comprar e quando comprar, e também quando casar e ter filhos. Para os estudiosos, fenômenos tão distintos como a queda na taxa de fertilidade (que caiu de 2,9 para 1,9 filho em dez anos) e o boom de salões de beleza são reflexos dessa transformação educacional a curto e médio prazo. Três milhões de estudantes matriculados em uma das quase 2 mil universidades privadas no Brasil estão traçando a mesma trajetória de Patrícia. Mauro Piacitelli é um deles.

classe c 01

CASA CHEIA_Wagner Gonçalves mostra sua coleção de camisas de grife enquanto Maria Inês prepara o almoço de domingo. À mesa, Fabiano, 7, Mateus, 5, e Gabriel, 3, os filhos da vizinha que costumam aparecer para o almoço. “Eles já são da família. Queria que a casa estivesse ainda mais cheia de crianças”, diz Maria Inês

FONTE_Centro de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
(1) Projeção com base na Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE
(2) Projeção com base na média de crescimento anual pré-crise

Leave A Response